Thursday, May 31, 2007

O PAGURO E O MOLUSCO

O MOLUSCO

O molusco é um "ser-quase-uma qualidade". Ele não necessita de vigamento, mas de um anteparo apenas, algo como a cor no tubo. Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o cuidadosamente num escrínio cuja face interior é a mais bela. Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais preciosas. O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta. Duas portas ligeiramente côncavas constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte. Nada se pode fazer para tirá-lo dali vivo. A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa força, à palavra - e reciprocamente. Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto.
É o caso do paguro.


(Francis Ponge. O Partido das Coisas. Iluminuras, 2000. Trad: Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria)






Wednesday, May 30, 2007

E.E. CUMMINGS

Esta para sair o nosso E.E. Cummings, pela Editora da UnB (Poetas do Mundo).
Aqui vai uma amostra.


primeiro passarim o;
você diz uma coisa
(para somente mim)
agora partiu quem.

desde devém porquê:
velho se torna novo
(inverno até mais ver)
primavera olá,

E.E. Cummings/"First robin the"/
Trad. Adalberto Mueller
O tigre de Veludo. Alguns Poemas. Editora da UnB (no prelo)

Monday, May 28, 2007

COLDPLAY e o TEMPO


UM TRECHO DO QUE ESTOU ESCREVENDO SOBRE POESIA E MIDIA:
veja o clipe:
http://www.youtube.com/watch?v=V3Kd7IGPyeg

(...)

Tarkovski afirmava que o cinema se distinguia das demais artes – e das demais formas de expressão humana – por ser capaz de tornar sensível o fluir do tempo . O tempo no cinema, segundo Tarkovski, não é apenas um tema, um assunto, um objeto. O tempo é ele mesmo o lugar onde o cinema acontece, e o cinema é o próprio tempo tornando-se visível e audível. Mas que tempo? O tempo da criação, que é o tempo humanizado, o tempo “esculpido”.
Os videocliples do Coldplay tornam possível que as reflexões de Tarkovski, sobre o cinema poético, e sua própria prática de diretor, atinja o domínio da comunicação massiva.
The scientist, por exemplo. Trata-se de um clipe bastante incomum, porque desenvolve uma narrativa linear (não uma série de fragmentos desconexos, como sói acontecer com os videoclipes), só que de forma invertida (como na seqüência invertida de O homem da câmera, de Dziga Vertov). Quando o clip começa, Chris Martin está deitado num colchão, olhando para cima e cantando (numa bela plangée em 90 graus, a grua parte do rosto de Martin até mostrar o cochão inteiro sobre o piso de cerâmica). Subitamente, vemos que ele se levanta, ou melhor, é “levantado” do colchão (pela inversão da imagem, pois na verdade ele havia deitado), e então vemo-lo ir passando, sempre com movimentos invertidos, por vários locais (uma rua, uma quadra de basquete, um campo de árvores) até chegar a um carro no meio de uma campo. Em seguida, vemos uma mulher caída no chão, e com o recuo da imagem sabemos que ela fora projetada do carro conduzido por Martin, depois que eles desviaram de um caminhão que vinha na contramão. A anedota, como a letra, é bastante simples. Mas a construção narrativa é impressionante. Para começar, a relacão curiosa entre a imagem invertida e o som não-invertido, que só chama a atenão quando nos detemos na construção da narrativa. O problema que se coloca, na construção da imagem audiovisual invertida, é que, se dissociarmos som e imagem, e acoplarmos um som não invertido, não haverá sincronização, pois o movimento dos lábios não estará sincronizado com o som. Por isso, o diretor Jamie Thraves começa o clipe com primeiro plano, em plongée de 90 graus, de Martin, para acentuar um problema de sincronia. Note-se também que posição de seu braço forma um ângulo de 90 graus, que cria uma certa textura geométrica com o colchão azul e o formato do piso:
Para que o som estivesse sincronizado com os movimentos labiais de Martin, ele teve que cantar a música de forma invertida (uma tarefa que lhe consumiu semanas, apenas para decorar)
(...)

Adalberto Mueller
Poesia e Midia (em preparacao)

Saturday, May 26, 2007

POSTCARDS I

(Madrid, Gran Via. A. Mueller)

MADRID

Depois do sol, do rioja, do presunto serrano, dos tapas, dos Velázques do Prado, dos cinemas da Gran Vía, Madrid fica na memória como uma casa de molas. O que fazer com molas, sem aparelhos que delas necessitem? O que fazer com Madrid longe de Madrid? Recordar-se, apenas. Pois a recordação é a mãe das musas, que são filhas bastardas das bailaoras, aquelas que ficam escondidas em todas as esquinas da cidade real, desafiando os passantes a um duelo com a espada negra dos olhos. Em Madrid não e vê: é-se visto. Mas não se trata de visão apenas. Madrid também entra pelos poros, e fica na pele, como uma doença: uma saudade. Madrid não existe. Está sendo sempre inventada.

Adalberto Mueller

Friday, May 25, 2007

Celan


Paul & Giselle Celan

A PALAVRA PARA O IR-ATÉ-O-FUNDO,
que nós lemos,
Os anos, as palavras até eles.
Ainda somos isso.

Você sabe, o espaço é infinito.
você sabe, não precisa voar,
você sabe, o que se escreveu em teu olho
nos afunda o profundo.

DAS WORT VOM ZUR-TIEFE-GEHN,
das wir gelesen haben.
Die Jahre, die Worte seither.
Wir sind es noch immer.
Weißt du, der Raum ist unendlich,
weißt du, du brauchst nicht zu fliegen,
weißt du, was sich in dein Aug schrieb,
vertieft uns die Tiefe.

Paul Celan
Tradução Adalberto Müller